10/07/2017 às 23h15min - Atualizada em 10/07/2017 às 23h15min

Mural de campanha é coberto de cinza,em Americana.

“Juntos Somos Fortes” assinado por Leonardo Smania Donanzan

REDAÇÃO/ FACEBOOK
Leonardo Smania Donanzan/Facebook
A cidade de Americana, perdeu um de seus murais que integrava um conjunto de obras com o objetivo de arrecadar doações para a Apae.
A campanha “Juntos Somos Fortes” assinado pelo artista plástico Leonardo Smania teve seu mural pintado de cinza, na Avenida Brasil.

Desde dezembro do ano passado o grafite da aluna Gleice, abrilhantava a avenida.
Os motivos da cobertura do muro são desconhecidos.

Leia abaixo o desabafo do artista:

“Sobre fazer arte em uma cidade racista e elitista.
Nietzsche tem uma frase que resume bem parte do que sinto. Diz que “temos a arte para não morrer da verdade”. Realmente, seja você artista ou espectador, parece caber à arte – seja ela a pintura, a música, a dança, teatro, cinema ou mesmo o senso de humor – algum poder fascinante de aliviar nossas vidas, e mais que isso, conferir sentido a nossa existência. Particularmente, seja na pintura ou na maneira que levo minha vida, tomo sempre cuidado para que esse alívio não se transforme propriamente em uma fuga da realidade, negando o que sinto ou o que seria “a verdade”.
Prova disso, é analisarmos a origem de nossa cultura e dos nossos mais influentes movimentos artísticos. Nessa hora, talvez não haja exemplo mais conveniente a ser citado do que os elementos que compõem a nossa cultura e a cultura negra em geral. Não foi negando o sofrimento da própria existência que escravos e ex escravos lamentaram o blues, improvisaram o jazz, dançaram o funk e vociferaram o rap, com isso revolucionando e revirando todo o cenário musical. Da mesma forma, foi somente nas fendas de uma sociedade burguesa e racista – que desprezava a própria terra e tinha olhos somente para a cultura europeia – que o samba, o maracatu, candomblé, capoeira e todos os outros elementos da rica cultura brasileira proclamaram sua existência, conferindo identidade, vida – e principalmente cor – a pessoas que sequer eram reconhecidas como tais.
Aliviar a dor. Cicatrizar feridas. Irromper a realidade. Talvez seja esse o sentido (porque são a mesma coisa) mais sincero da arte. Qualquer que seja meu discurso, produção artística ou intelectual, ela perde sentido quando não conversa com a realidade, quando não se expõe nem se descentraliza. Sem objeto e coerência, torna-se uma mera verborragia egóica, incapaz de transformar. Não foi com propósito diferente que eu entrei e resolvi começar essa campanha de murais com a APAE. Não é porque eu me acho muito “foda” e superior que eu entrei lá. Além da vontade de ajudar a instituição e o prazer de conhecer e estar com os alunos, foi um complexo de inferioridade em relação à minha altura que me conferiu empatia e me atentou para essa representação de padrões, retratando e dando evidência a pessoas completamente esquecidas durante a história da arte. Foi uma imersão e uma costura com a realidade, e não propriamente uma idealização ou uma tentativa de maquiá-la e negá-la.
É por esse motivo que os dentes da Gleice não poupavam detalhes. É por esse motivo que os retrato com espinhas e dentes tortos e amarelos. É porque é assim que o são, e porque nem eu nem ninguém deve dizer que para ser quem são eles têm de ser “menos isso”, “mais aquilo” ou mesmo diferentes. É porque o tempo e a energia gasta que concentramos nesse “se” – desejante por suprir uma falta inerente e encaixar-se em uma demanda tirana de um padrão impossível – sempre será em vão se para isso precisamos negar ou esconder uma parte de nós. É por esse motivo também que todos os murais são permeados de cores e harmonia. Não somos como desejávamos ser. O mundo não é como desejávamos que fosse. Mas podemos ser mais que isso.
“Pô, daora a arte heim... Mas tinha que ser preta?”
“Não sei porque pintaram isso, só serve pra causar depressão”
Hoje, sem aviso prévio e muito menos uma devida explicação, os administradores do condomínio empresarial Avenida Office, localizado na av. Brasil, decidiram apagar a pintura da Gleice, segundo mural da campanha Juntos Somos Fortes, da minha parceria com a APAE.
Com base nos comentários que ouvi enquanto a retratava, talvez esse já seja um sentimento latente de certa parcela da população de Americana. Uma cidade proveniente da última região a abolir a escravidão de um país que por ora também foi o último a aboli-lo em sua região de países.
É simbólico esse grafite ser apagado na hora que a base da prefeitura instaura uma ADIN para extinguir o então recém aprovado Dia da Consciência Negra. Argumentam que a data, que cairá num dia de semana, atrapalhará o comércio local, mas se esquecem do fato de que essa data é pra lembrar que foi justamente por 350 anos de escravidão do povo negro que nossa economia subsistiu. Esquecem que foi também APAGANDO a existência do povo negro, abolido mas completamente enxotado e desassistido, que se iniciaram as favelas, o déficit de moradia e a desigualdade social no país.
Não adianta querer conversar sobre o presente mas se esquecendo da própria história. Não adianta querer conversar sobre economia mas sem levar em consideração a desigualdade social gerada pelo racismo. Não adianta querer discutir o ideal sem levar em consideração a realidade.
Querem debater se o feriado é válido ou não numa cidade onde sorrir ainda é um crime. Onde seu bem estar é motivo de depressão. Como poderemos falar sobre quebrar padrões e “assumir-se” onde você é apagado simplesmente por existir?
Que tipo de conhecimento, que tipo de arte, que tipo de cultura queremos produzir apagando nosso passado, apagando nossos desgostos e alienando a nossa realidade?
Quantas Gleices serão apagadas na nossa falta de sinceridade em enxergar o presente – incapaz de transformar o futuro?
O mural foi apagado mas a campanha ainda persiste. Muita tinta ainda há de ser derramada nessa guerra cultural. Peço encarecidamente para os que apoiam o projeto e querem colaborar com a APAE de Americana, para que entrem e façam doações no link abaixo. É a forma que nos resta de não deixar o muro ser apagado em vão. Todo o dinheiro será revertido para a instituição.”

Leonardo ressalta que todos podem colaborar com a campanha, basta acessar: https://www.catarse.me/apaeamericanajuntossomosfortes

Conselho de Cultura de AmericanaNOTA DE REPÚDIO SOBRE O APAGAMENTO DO MURAL DO ARTISTA LEONARDO SMANIA

A classe artística, bem como toda a população sensível de Americana, recebeu em choque na tarde desta segunda-feira (10), a notícia em tempo real, de que o mural que fora pintado pelo artista plástico Leonardo Smania, para a campanha "Juntos Somos Fortes", em parceria com a APAE de Americana, foi apagado.

A autorização provisória emitida pelo engenheiro da obra em que o muro pertence, foi vencida. Porém, a arte expressada naquele muro não é como uma pintura qualquer para se passar por cima desta forma. O que foi passado por cima, além das cores, foi da belíssima mensagem que a campanha tenta buscar e de toda delicadeza do trabalho e dedicação do artista.

Queremos respeito, com o artista, com a cidade, com a causa. Não queremos mais receber notícias como esta da forma abrupta como foi. Por que fazer isso? Por que não nos utilizarmos do diálogo para criar pontes em comum ao invés de ações extremas que só nos separam?

Desta forma, eu, Denis Carvalho, presidente do Conselho Municipal de Cultura de Americana, declaro meu repúdio a condução desta atitude. Informo ainda, que, através do mesmo Conselho, iremos discutir o caso e buscar alguma iniciativa em relação a mais uma infeliz ação, que não é um caso isolado e que reflete nossa cultura higienista, negando a verdade do nosso povo e da nossa história.

Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »